Bárbara Reis - "Não é verdade que uma boa redação tenha que ter jornalistas que dêem resposta a tudo"


Por Diogo Pereira
diogoatpereira@gmail.com 

Não queria ser jornalista queria ser fotografa mas o Expresso trocou-lhe as voltas. Conhece bem o mundo, foi correspondente em Nova Iorque e esteve na Somália quando a Guerra Civil começou. Foi na editoria de internacional que Bárbara Reis mais navegou. Hoje é diretora de um dos jornais de referência que mais tem apostado nas novas tecnologias. O online, as redes sociais, o contributo dos cidadãos. Tudo isto é visto com bons olhos pela mulher que tem nas mãos o jornal de Belmiro de Azevedo desde 2009. Não acredita no jornalista polivalente e afirma que uma boa redação tem que ser composta por jornalistas com as mais diferentes faculdades (técnicas e profissionais). Depois de me fazer um tour pelo open space do Público, com vista para os barcos da Doca de Alcântara, Bárbara Reis concede-me esta entrevista num dia tranquilo.

Ainda há espaço para jornais diários?

Espaço para jornais diários há seguramente. O jornalismo existe à séculos e é uma das profissões mais relevantes que existem. O que está em causa não é o jornalismo, com as novas tecnologias o jornalismo melhorou em muitos aspetos, ao contrário do que muitas vezes é dito. Hoje temos no jornalismo instrumentos e ferramentas que são verdadeiramente úteis ao nosso trabalho, não só porque permitem uma leitura de dados em quantidades absolutamente incríveis que demorariam semanas e semanas a tratar e que hoje conseguimos tratar de forma rápida acabando por conseguir fazer trabalhos que, no passado, por demorarem muito tempo, acabávamos por não os fazer. Falo sobretudo da Accountability que é feita pelo estado. A fiscalização da "coisa pública" é mais fácil por causa dessas ferramentas e, por outro lado, há a nova força dos leitores, que nos alertam para determinados assuntos e muitas vezes sabem mais do que o jornalista que está a fazer a reportagem. Se há muitos problemas, hoje em dia, à volta deste tema, estão relacionados com a sustentabilidade, ou seja, a grande alteração que houve na forma como as pessoas hoje consomem informação.

Se conseguimos, antes de nos levantarmos da cama, ter as notícias ao nosso dispor - o próprio Público disponibiliza este serviço - porque é que devemos continuar a comprar o jornal em papel?

Esse é sem dúvida um dilema que temos hoje. Como é que o papel se vai transformar? Em algumas partes do mundo, embora não seja uma verdade universal, mas é seguramente verdade na Europa e nos Estados Unidos, o papel está a cair. Não porque os jornais estejam piores, porque o The New York Times não está pior e no entanto vende muito menos do que vendia há dez ou vinte anos, isto para dar um exemplo, talvez, do melhor jornal do mundo. A questão não é a qualidade do jornalismo, a questão é a mudança de hábitos. Que os jornais, na sua edição impressa, vão mudar, vão, que muitos vão, provavelmente desaparecer, é verdade mas exatamente como é que nós vamos ler jornais no mítico ano de 2041, que é o ano que um dos muitos gurus deste setor disse ser o ano em que o último jornal será impresso no planeta, não sabemos, muitas coisas já foram ditas como verdade que não se realizaram. A questão não está tanto na pergunta "vamos ter papel ou não", está mais noutra questão que é "os leitores, estejam eles onde estiverem, vão pagar pelos conteúdos de qualidade ou não”. Temos que caminhar para um momento em que uma boa parte dos leitores vai concluir que para ter conteúdos de qualidade em jornais de referência vai ter que pagar alguma parte porque o jornalismo de qualidade é caro. As redações, como aqui se vê, de um jornal exigente e independente têm que ser grandes. Não se faz um jornal generalista que dá resposta a muitos temas com meia dúzia de pessoas, isso é um mito. Os jornais, para terem capacidade de resposta e para fazerem um jornalismo mais profundo que não seja só a coisa imediata, a frase do dia, precisam de muito dinheiro. As redações são, por natureza, máquinas caras. Os leitores vão ter que começar a pagar mais do que pagavam até agora. Houve quem dissesse que era tarde demais porque os jornais já tinham começado a oferecer conteúdos gratuitos e que já não podiam voltar atrás mas uma das notícias boas que os últimos meses nos trouxeram foi o facto de nós percebermos que já há uma mudança de comportamento da parte dos leitores, principalmente nos Estados Unidos onde têm começado as tendências já mais de metade dos jornais online têm algum tipo de paywall.

Atualmente existe um BOOM de informação e isso dá a ideia que o que interessa é dar primeiro e não dar melhor.

Isso poderá ser verdade para alguns jornais não é verdade para o Público. Somos olhados com algum espanto por alguns observadores que consideram, por vezes, o nosso site demasiado estático para aquilo que seria alguma definição de um ideal que não é o nosso. Isto significa que nós não estamos a mudar as noticias no site a todo o minuto e temos capacidade para isso. Isto porque sentimos que hoje, por haver tanta informação disponível, é importante que haja um lugar de referência no qual o leitor perceba o que é importante. Sobre as mil coisas que se estão a passar, no nosso critério, há dez que são importantes e uma é mais importante do que a outra e por aí fora. Hierarquizar é um dos nossos papéis uma vez que existe imensa informação disponível. Podemos ter a mesma manchete no site durante uma, duas ou três horas porque achamos que apesar de terem aparecido 50 noticias que nós próprios escrevemos ou filmamos mas não alteramos a ordem porque achamos que nada é mais importante do que aquela noticia que esta a abrir. No fundo o que me está a dizer está a sintetizar um dos desafios que os jornais hoje têm: com uma perna fazem o sprint e com outra fazem a maratona e isto é a mesma equipa, no mesmo dia, num circulo de 24 horas.

Como é que o Público encara os leitores que já deixaram de ser meros espectadores mas já passaram a ser eles próprios produtores de informação.

Essa é uma das novas realidades e é uma vantagem. No caso do Público os leitores são construtores do próprio site, por exemplo já entregámos a gestão dos comentários dos leitores aos próprios leitores, ou seja, demos poderes, e através de um sistema de mérito, votado pela própria comunidade de leitores até um ponto máximo no qual adquirem poderes de aprovar e reprovar comentários da própria comunidade de leitores. E estamos cada vez mais a caminhar no sentido de responsabilizar os leitores pela qualidade dos comentários, pedindo-lhes que se registem impedindo agora que haja comentários anónimos. Queremos contribuir para que o debate no site, que é um espaço que é publico mas que não é uma praça pública, seja construtivo...

... não estão dessa forma a descartar o papel do moderador que é o jornalista?

Não. Esta não só é uma realidade como é uma vantagem e é assim que nós olhamos para esta nova força dos leitores e não só olhamos para ela como incentivamos e damos-lhes mais espaço: nós queremos que os leitores participem porque achamos que têm um papel a desempenhar na construção do nosso site. Mas isso não é fazer jornalismo. Nós não estamos a entregar o jornalismo nas mãos do leitor porque o jornalismo tem regras, tem uma técnica e tem um saber que é próprio e que se aprende nas universidades e nas próprias redações. Não estamos a dizer que o jornalismo é feito pelos cidadãos. O chamado jornalismo da cidadania ou jornalismo cidadão é um mito urbano. O leitor contribui hoje como não contribuía há dez, para não dizer há 20 anos, no jornalismo, é verdade, mas não faz jornalismo, participa, contribui com imagens, com sugestões, com correções, com saber: muitas vezes os leitores sabem mais do que o jornalista que está a escrever naquele momento sobre aquele tema e neste momento o que nós temos é, não só, os instrumentos para receber essa informação como temos a capacidade e a vontade de olhar, refletir e introduzir isso e essa ser mais uma camada do próprio jornalismo que esta a ser feito. Agora o jornalismo é jornalismo.

Há quem defenda, nomeadamente o Miguel Sousa Tavares, que os órgãos de comunicação social devem sair do online...

Eu acho que o Miguel Sousa Tavares não está bem a ver o que se está a passar...

...Mas compreende?

Sinceramente não compreendo porque é ignorar o que está à nossa volta. Não é uma questão de vontade. O mundo evoluiu de uma forma avassaladora muito rapidamente em muito poucos anos. O Iphone tem quantos anos? O Ipad tem quantos anos? Contam-se pelos dedos das mãos, são coisas muito recentes mas que mudaram a vida de milhões de pessoas e no caso do Público e de outros jornais de referência essas máquinas estão associadas ao nosso tipo de leitores. São pessoas com mais capacidade de compra, por um lado ou, por outro lado, que associam algum estatuto social ou um comportamento, o ser moderno é ter essa máquina. Não são necessariamente pessoas com muito dinheiro mas são pessoas que valorizam terem aquele objeto e muitas dessas pessoas coincidem ser leitores dos jornais de referência, digamos que há uma ligação direta. Para além disso a questão central é aceitarmos o que se está a passar, e o que se está a passar é muito mais forte do que a nossa capacidade de travar o tempo ou de mudar o mundo. Nós temos que fazer jornalismo, o melhor jornalismo possível, jornalismo rigoroso, jornalismo independente, jornalismo relevante, jornalismo com força moral e adaptarmo-nos ao mundo que nos rodeia. E o mundo de hoje é diferente do que era há 20 anos e um jornal que ignora que uma boa parte dos seus leitores já não procura as notícias num jornal impresso mas procura as notícias online, porque quer saber agora o que se passa no Quénia onde foram assassinadas 50 pessoas e quer saber naquele momento que grupo de radicais islâmicos, terroristas da Somália é aquele que está a fazer o atentado. Ele quer saber agora, não quer saber amanhã. Há 50 anos quando eu queria saber uma notícia eu acordava de manhã, ia a um quiosque, comprava um jornal e ficava a saber o que se tinha passado. Hoje a realidade não é assim. As propostas de “vamos fechar os sites e fazer só jornal”, como se isso fosse fazer as vendas aumentar, não são aceitáveis porque as pessoas mudaram o seu comportamento e querem informação de outra maneira, da mesma maneira que hoje as pessoas já não compram Polaroides e compram máquinas digitais. Há um nicho para as polaroides mas o universo da fotografia teve que evoluir e isso não fez com que a fotografia em si, como arte ou como entretenimento perdesse espaço ou perdesse importância na vida das pessoas. A essência é o jornalismo e é sobre isso que temos que nos preocupar.

Falava-me do jornalista que tem que fazer com uma perna o sprint e com outra a maratona. Com os cortes orçamentais que temos vindo a verificar nas redações como é que se consegue aumentar o número de conteúdos que são produzidos? Uma perna para o vídeo, uma perna para o texto, etc. O mesmo jornalista já faz isto tudo.

É um mito a ideia de que todos os jornalistas vão ter que saber trabalhar com todos os instrumentos disponíveis e serem multitask, não faz sentido hoje como não fazia sentido à cem anos quando falávamos de outras tecnologias. Haverá sempre numa redação um misto de pessoas, umas mais velhas, outras mais novas, umas mais especializadas em determinadas áreas muito específicas, outras, parecendo um pouco absurdo, especializadas em serem generalistas, com uma grande capacidade de resposta a diferentes temas, umas particularmente boas em reportagem, outras particularmente boas em jornalismo investigativo, outras muito boas em data jornalism (a tal vertente de mergulhar em milhões de dados e trazer dali uma boa estória), outras muito boas em vídeo. Haverá também em todas as redações alguns jornalistas que serão bons acima da média em muitas destas coisas em simultâneo, mas serão poucos. Não é verdade que uma boa redação tenha que ter todas as pessoas com uma mochila às costas que tem um Ipad e uma câmara de vídeo e um microfone e um gravador e que faz o pino e dá resposta a tudo. Não é possível.

Mas com os cortes a que estamos a assistir não é a esses jornalistas que se recorre mais?

Não há uma fórmula mágica para a redação perfeita mas uma redação de um jornal de referência tem que ter uma variedade de tipo de pessoas que incluiu, desde alguém que é muito bom a fazer análise de política internacional e que nunca fará um vídeo e outra pessoa que é particularmente boa a fazer vídeos bem e depressa. É deste misto de talentos e de qualidades que nasce uma boa redação. Em relação aos cortes, as redações têm que ter capacidade de escolherem muito bem o que vão fazer. Se calhar eu não vou fazer estas dez coisas que eu há dez anos fazia mas vou ter que ir à Síria porque é lá que está o acontecimento mais importante do ano. E esse é o tipo de opções que estamos a fazer. Neste momento temos uma repórter na Jordânia a tentar entrar na Síria, temos uma repórter que esteve com fotógrafo e com vídeo durante os quinze dias antes das eleições alemãs na Alemanha e temos neste momento dez pessoas nas autárquicas a cobrir os diferentes debates em todo o país. Se havia três coisas que tínhamos que fazer neste mês eram estas, e fizemos, se calhar houve 40 coisas que há dez anos teríamos feito e que não fizemos.Significa isto que hoje temos que saber escolher muito bem e estar nos sítios relevantes. Por outro lado estas dificuldades obrigaram-nos a sermos mais criativos. E uma das coisas que nós criamos no Público foi o projeto Público Mais que pretendeu criar um fundo que é financiado por mecenas de uma forma totalmente independente ou seja, os mecenas contribuem com uma parte para esse fundo uma vez por ano, no inicio do ano, não fazendo ideia, nem eles nem nós (até porque a realidade ainda não aconteceu) com que reportagens é que vamos gastar o dinheiro. Isso permite-nos fazer trabalhos e dedicar tempo, que hoje em dia é uma das coisas mais preciosas numa redação, e que sem esse fundo provavelmente não iriamos sequer faze-los e muito menos faze-los tão bem.

Existem cursos, no ensino superior, de jornalismo há 20 anos, o da Universidade de Coimbra foi o primeiro. Há quem defenda que é justamente nestes últimos anos que o jornalismo tem vindo a perder qualidade... Acha que as universidades preparam bem os novos jornalistas?

O jornalismo tem uma aprendizagem que está muito relacionada com a prática. Mas isso também será verdade para a medicina, por exemplo. Um jovem médico que estuda durante 7 anos na universidade tem um momento em que tem um doente à frente e deve ter medo, e terá de certeza muitas dúvidas e irá procurar os colegas mais velhos e tentar perceber se está a fazer um bom diagnóstico e se está a ver bem o que se está a passar. Ou seja, as profissões têm um lado muito prático e são desenvolvidas com a experiência. Se as universidades poderiam ter um lado mais operativo e mais tangível, mais prático, provavelmente sim, na minha versão de finais dos anos 80 na Nova não tinha esse lado tão prático e portanto a parte prática era um bocado o B A BÁ do que é o LEAD, o que, não se diferenciava muito das aulas de jornalismo que tínhamos no liceu. Os novos jornalistas podiam trazer já uma noção mais realista e uma experiência mais prática: terem feito trabalhos verdadeiros, sérios na universidade, sem dúvida não há razão nenhuma para isso não acontecer, sendo isso verdade também é verdade que um jovem a começar uma profissão será sempre um jovem a começar uma profissão e terá sempre dois, três anos de surpresas diárias. Estou a falar de coisas simples como construir uma estória ou coisas mais complexas como gerir as pressões externas de todo o tipo.

Vê com bons olhos o jornalismo do futuro?
Sem dúvida! Temos a tecnologia que nos ajuda e não podemos olhar para a tecnologia como uma coisa má. Como tudo há usos bons e maus da tecnologia e a tecnologia abriu portas e criou problemas novos que não tínhamos há uns anos. Por outro lado trouxe-nos ferramentas que nos permitem, em muitos aspetos, fazer muito melhor jornalismo. Hoje temos jornalistas, de uma maneira geral, bem preparados, muitos jornalistas com licenciaturas especificas em áreas sobre as quais escrevem. Hoje somos muito exigentes, somos muito mais exigentes do que éramos antigamente, somos exigentes com o rigor, somos exigentes com a profundidade de análise que fazemos, somos exigentes com o equilíbrio de ouvir todos os lados e temos boas ferramentas e pessoas bem preparadas.

©Entrevista gravada em 24 de Setembro de 2013